O livro A UTOPIA do pensador Thomas Morus é um clássico, a obra se imortalizou, não ficou presa no seu tempo e nem no seu espaço geográfico. Foi escrita no século XVI e continua com um incrível sabor de atualidade. Parece que, em certo sentido, foi escrita para o nosso tempo. Suas críticas a intolerância religiosa, a ganância dos ricos e a surdez dos poderosos, podem ser reproduzidas nas redes sociais e poucos perceberiam que estavam lendo um texto tão antigo. Neste livrinho incrível, temos uma refinada filosofia. Ele foi escrito de forma literária para se conectar com a tradição filosófica platônica, com muita ironia e sarcasmo, numa linguagem provocativa, Morus construiu diálogos magníficos. Seu livro é dividido em duas partes: a primeira faz mordazes críticas as Ilhas britânicas e, na segunda parte, produz uma ilha imaginária, uma sociedade idealizada, detalhando o funcionamento e estrutura da sociedade dos utopianos, moradores da Ilha de Utopia. Depois de apresentar o modo de vida dessa sociedade idealizada, no final da obra ele escreveu:
“se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades. Aspiro, mais do que espero.”
Essa frase final é digna de nota, pois depois de conduzir o leitor nas entranhas dessa sociedade ideal, o autor diz desejar profundamente, aspirar o ideal narrado pelo personagem do livro, mas não tem esperança de um dia viver numa sociedade como aquela. “Aspiro, mais do que espero”. Poderíamos pensar que um dos motivos da desesperança de Morus encontra-se na surdez dos poderosos. Eles jamais vão ouvir ou permitir ouvir conselhos contrários ao que almejam. A reflexão não tem espaço entre os homens de poder. Isso para o pensador era tão evidente, tão cristalino, que ele escreveu o seguinte diálogo:
“Para vos revelar o meu modo de pensar, é perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo. Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia não tem acesso na corte dos príncipes. Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na peça que deve representar, desempenha seu papel com decência e harmonia. É esta a que deveis empregar. ”
Com a habilidade platônica de apresentar uma ideia e imediatamente a sua contradição, quase no mesmo plano. O personagem afirma uma coisa muito importante. A filosofia não tem acesso aos palácios dos príncipes. A corte não suporta filosofia. A única filosofia suportável na corte é a filosofia docilizada, civilizada, cortês, frágil. Aquela que conhece e aceita o teatro social, sabe representar e faz o jogo dissimulado da política. Mas isso não é filosofia. A filosofia é selvagem, agressiva, não fecha os olhos para as injustiças, os preconceitos e as intolerâncias. Seu papel não é buscar harmonizar territórios, mas desterritorializar. Provocar, afligir. Por isso, por sua selvageria, a filosofia não tem espaço nos espaços de poder. Os ministros são surdos. Como escreveu Morus no século XVI: “é perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e os políticos de hoje” não querem ouvir a verdade. Parece que estava olhando para o século XXI, neste momento histórico, que temos um verdadeiro culto a ignorância. Até a terra é plana, nada mais medieval do que isso. Além do mais, sabemos que os poderosos necessitam diminuir a potência do pensamento crítico e selvagem que a filosofia exercita. Eles tratam a filosofia como o pior mal da sociedade e usam e instrumentalizam a seu favor a religião para neutralizar a força do pensamento filosófico e assim obter o controle do rebanho. Porém, a sorte de quem ama o saber é que o que é proibido pelo poder acaba despertando mais interesse, o tiro quase sempre sai pela culatra, existe uma força desconhecida pelo proibido, que historicamente não deixa morrer o pensamento livre. A filosofia como fênix sempre ressurge mais forte e viva, mais selvagem e potente. Quer os poderosos gostem ou não. A filosofia terá seu espaço na sociedade de ontem, de hoje e de amanhã.
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