Neste artigo é analisado o sistema mnemônico, recentemente adaptado para a série da BBC Sherlock, sugestivamente referido como um “palácio da mente” ou “palácio da memória”. Trata-se de uma espécie de exercício psíquico que permite a Holmes “revisitar" o seu passado. Nesse espaço mental, o protagonista consulta “arquivos” de dados (textos e imagens) que estão armazenados em sua mente em detalhes. Esse “poder” o leva a memorizar, relembrar e visualizar tudo. A técnica milenar do poeta grego Simônides de Ceos é aqui comparada com a virtualidade do processo de armazenamento nos “palácios virtuais” da atualidade, como a própria concepção de arquivo como forma de preservar e recriar a ideia de passado.
A série televisiva Sherlock é uma produção da BBC londrina, disponível on demand, e, como o próprio nome sugere, é uma livre adaptação da obra de Conan Doyle. Trata-se de uma adaptação tão livre que opera uma licença poética ao abandonar o cenário original – de fins do século XIX e primórdios do século XX –, transpondo-o para os dias atuais, fazendo, assim, com que a trama transite entre os mundos contemporâneo e passado.2 Como não poderia deixar de ser, a série traz aventuras, e desventuras, do célebre protagonista que dá título à obra, sempre ao lado do fiel escudeiro, investigações, conflitos e, finalmente, pelo desfecho que resulta na solução de tramas, de mistérios e crimes. Gostaria de chamar a atenção – e, prometo, sem fazer spoiler para os que pretendem assisti-la – para um mecanismo de memória de Sherlock – sugestivamente denominado mind palace ou memory palace (palácio mental ou palácio da memória), uma espécie de exercício psíquico que possibilita ao detetive “revisitar” seu passado. E, por essa via, ele acessa “arquivos” (textos e imagens) ali armazenados. Tal “poder” lhe confere a faculdade – assim como ao personagem de um conto Jorge Luis Borges, “Funes, o memorioso”3 – de tudo memorizar, tudo relembrar e tudo visualizar. Em um dos episódios, os personagens Watson e Stapleton comentam sobre esse dom de Sherlock: John: Ah, é seu palácio mental. É uma técnica de memória. Uma espécie de mapa mental. Você traça um mapa com a locação – não necessita ser um lugar real – e daí você deposita memórias lá [...] teoricamente, você nunca pode esquecer de nada: tudo que você necessita fazer é encontrar seu caminho de volta. Stapleton: Então, esse local imaginário pode ser qualquer coisa – uma casa ou rua. John: Sim. Stapleton: Mas ele [Sherlock] disse “palácio”. Ele disse que era um palácio.4 Convém notar a ênfase de que esse local imaginário não poderia ser qualquer lugar ordinário, mas sim um palácio. Ou seja, o refúgio memorial de Sherlock é materializado num palácio: edificação que remete à proteção (muralhas, torres, fossos) e igualmente ao poder (econômico, político, bélico etc.). Dessa forma, por se tratar de um local imaginário e imaterial, ele é livre de parâmetros mundanos. E assim, nesse palácio mental, Sherlock aciona lembranças para dali estabelecer analogias, determinando um caminho investigativo, uma pesquisa em suas fontes armazenadas que culmina, inevitavelmente, com a solução de crimes. O procedimento adotado por Sherlock, contudo, não é um recurso meramente ficcional, inventado pela trama televisiva. Memory palace é uma técnica mnemônica ancestral que tem sua origem relacionada ao poeta grego Simônides, remontando ao ano 477 a.C., e cuja prova de sua fabulosa memória ocorreu quando, durante um banquete, o teto desabou matando dezenas de pessoas. Simônides, que se ausentara momentaneamente do recinto, escapa ileso da tragédia, tornando-se então testemunha para o reconhecimento dos cadáveres, pois havia memorizado a posição de cada um dos convidados à mesa. Segundo Frances Yates, esse macabro episódio fez com que lhe fosse atribuída a invenção da arte da memória.5 Diz Yates: “Cícero enfatizava que a invenção da arte da memória por Simônides não radicava apenas na sua des- coberta da importância da ordem sequencial para a memória, mas também na de que o sentido da visão é o mais forte de todos os sentidos”.6 O palácio de Sherlock, ativado por um mergulho no subconsciente, é onde ele consulta uma série de “documentos” ali arquivados. Em termos estéticos, esse momento é representado tendo como pano de fundo seu semblante absorto e concentrado, diante do qual projetam-se, em fantásticos efeitos de pós-produção, imagens: cartas, fotografias, cenas e personagens. A função desse palácio da memória, ou da mente, é o armazenamento e a preservação de dados, tal qual o design de um software.
Para que haja a construção narrativa, e novamente estabelecendo o paralelo com os recursos visuais, é necessário primeiro anunciar como pressuposto uma distinção entre figura e fundo. Ao narrar, pressupomos que nosso ouvinte conheça esses limites, caso contrário, precisaremos, antes, delimitálos. Ou seja, é necessário construir um lugar familiar de onde se conta. Assim, tratar sobre os limites entre memória e história leva-nos a questões mais gerais sobre o estar no mundo e sobre a constituição de si – e do outro – por meio da linguagem. Nesse sentido, Sherlock narra primeiro para si mesmo a partir de fragmentos palpáveis, como bilhetes esparsos, manchas e partículas de pó para que eles concatenem sentido com informações previamente arquivadas em seu palácio mental, numa espécie de cruzamento e análise de fontes. Somente depois dessa operação, quando a informação já foi processada pelo personagem, é que a narrativa ganhará mais uma versão material, seja por meio da palavra verbalizada, escrita ou filmada, ou ainda num encontro de todas elas agregadas.
Conectando Sherlock à nossa vida real, sugiro que a ideia de um palácio de armazenamento remeta diretamente ao espaço dos acervos e arquivos públicos como os palácios da memória do historiador, resguardadas as devidas proporções – talvez nem sempre tão suntuosos como desejaríamos, mas, sim, são nossos palácios. Dessa maneira, proponho meios de refletir sobre os arquivos extrapolando seu aspecto meramente depositário. Poderíamos nos perguntar, no entanto, como isso seria possível. Creio que a resposta seria fomentando a produção de conhecimento por intermédio das fontes depositadas nesses lugares de memória; afinal, sabemos que os arquivos não produzem conhecimento, função atribuída aos pesquisadores com seus métodos de seleção e reflexão, a partir das fontes documentais. Porém, antes de formular uma questão norteadora, precisamos nos perguntar: qual é o “passado” com o qual nos deparamos nos arquivos? Valho-me da afirmação da teórica alemã Aleida Assmann: “O arquivo não é somente um repositório para documentos do passado, mas também um lugar onde o passado é construído e produzido”.7 Do meu ponto de vista, o passado não se “resgata” em algum local obscuro para vir à luz. O passado se reconstrói em nosso tempo presente, muitas vezes acionado por vestígios materiais – textos, objetos, imagens. A fábula de Sherlock nos fascina (ou, no limite, me fascina) pela infinitude de sua memória, pela ausência de fronteiras desse palácio que se impõe como um universo tão amplo quanto inatingível, mas absolutamente ficcional. Na vida real, temos que nos contentar com fragmentos da memória e com a incompletude das fontes materiais. Arquivos de tijolo e argamassa, ao contrário dos arquivos dos palácios imaginários, operam “meios materiais de arquivamento”.8 Estamos num lugar de memória, de salvaguarda material de fronteiras delimitadas, cujos nexos advêm dos processos mentais que perpassam desde a curadoria e recepção de fontes, atingindo a produção intelectual gerada com base em sua análise. O arquivo salvaguarda, contudo seu maior sentido só se faz possível, inevitavelmente, pela produção de conhecimento proveniente das pesquisas em seus acervos. Chamo a atenção para um componente fundamental denotador desse percurso mnemônico no palácio da memória: a noção de testemunha. A visita ao palácio – e a consulta às suas fontes – tira Sherlock de uma posição de mero observador. Não basta apresentar provas, pois, ao encontrá-las pairando em seu espaço mental, Sherlock torna-se testemunha dos eventos. Isso é intrínseco ao mito grego, ao qual me referi anteriormente, como originário do mind palace, em que Simônides, após o acidente, testemunha onde estava sentado cada um dos convidados. Assim, Sherlock vai para seu local secreto, acolhido em seu subconsciente, e dali regressa como testemunha. Ninguém questiona a veracidade de suas afirmações, nem mesmo a Scotland Yard, deixando implícito que há narradores pressupostos como legítimos. Noto que há nesses espaços mentais e, portanto, virtuais, algo de etéreo e ao mesmo tempo denso, como os hologramas ou como as nuvens virtuais que armazenam dados de forma aparentemente descolada dos impactos materiais, mas que têm uma alta taxa de consumo de água através das hidrelétricas que dão a energia necessária para que tais memórias sejam arquivadas ou da emissão de gás carbônico pelas termelétricas.9 Mais uma vez, o ofício do historiador esbarra em outros campos de estudo, agora beirando a física. Pergunto-me: o que é memória imaterial quando pensamos que memória é energia concentrada e que, portanto, a energia, em determinadas condições de pressão e de temperatura, poderá ter a densidade necessária para ganhar corpo? Tendo tal materialidade, que ruídos a memória emitirá? No campo da história, essas perguntas e inquietações não passam de devaneios, ainda que sirvam como estímulo para escavarmos novos e velhos arquivos, sopremos a poeira sobre os livros e documentos – essas, sim, partículas familiares a nós, historiadores – e sigamos desbravando palácios, perseguindo pegadas e rastros com nossos sentidos ativados – como os poetas – para conformarmos uma história que produza sentido. Não raro, corremos o risco de projetar nossas vidas individuais em histórias coletivas; tendemos a ler a história do “outro” como se fosse a própria, e esse é o dilema do narrador, pois, como eu disse anteriormente, é preciso partir de um lugar familiar, um lugar comum (não banal) para dar novos voos ao nosso olhar e nossa escuta. Esse é um trabalho impossível de se fazer sozinho, porque transcende gerações e leva o mais complexo e impalpável elemento, tempo. De fato, o que estou propondo é que repensemos nossa prática continuamente, para reestruturar a historiografia como a conhecemos. Inevitavelmente, utilizamos métodos, importantes, admito, de produção e manutenção da história e da memória que desprezam, em alguma medida, determinadas formas de narrar. Analisamos eventos, datas, personalidades, documentos, fotografias, exaustivamente, buscamos ouvir as vozes dos arquivos. Mas que passado é esse que encontramos encarcerado em nossos palácios? Afinal, memória é algo passível de ser acondicionado? E as memórias vivas que deambulam nas ruas?
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