“Preste atenção querida, o mundo é um moinho, vai triturar seus sonhos, tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó”. Esses versos do poeta Cartola foram escritos para sua filha, quando ela definiu que queria sair de casa e ganhar o mundo, como diziam ou dizem, quando decidiu ser mulher da vida. Termo carregado de preconceito, pois, até bem pouco tempo, as mulheres que conquistavam sua independência eram rotuladas de prostitutas… Sair da casa dos pais sem casar era coisa de mulher sem vergonha, as atrizes de circo, de teatro ou cinema ganhavam este estigma machista, pois no imaginário da sociedade patriarcal existe uma ordem, que as mulheres devem seguir obrigatoriamente: nascem filhas, se toram noivas de alguém, depois esposas, mães e viúvas. Não devem transgredir essa linha estabelecida. Mas, sempre existiu as transgressoras, elas movem a história. E para o poeta, a questão dolorosa é que sua filha resolveu sair de casa, e ele deu este último conselho para ela, anunciando antes, pois sabia que ela estava resolvida e já anunciava sua partida. Poesia triste e reveladora de um mundo entristecedor. O moinho da vida gira sempre e tritura todas as nossas ilusões. Ilusões das relações, dos delírios projetados nos outros, da inexistência de sombras entre as pessoas. Como se existissem vidas sem sombras. Em cada esquina existem perigos assustadores, cinismos, dissimulações e abismos, nos diz o poeta, profundamente impactado com a decisão da filha tão jovem. Entretanto, o mundo moinho triturador da vida não é pior que a casa prisão, que engaiolam os espíritos livres e as mentes libertárias. Ninguém precisa ou deve se diminuir para caber na vida mesquinha do outro, perder as asas e deixar de voar é a própria morte em vida dos espíritos livres, das mentes libertárias, isto é, de quem tem a marca da independência cravada no coração, quem reconhece que para viver é fundamental ser a melhor companhia de si e para si mesmo. Amar a si, se reconhecer como digno, só assim é possível pensar em amar outra pessoa e ser amado por ela. O amor é para poucos, pois ele é liberdade… na relação amorosa ninguém é dono de ninguém. Pessoas não são objetos de posse, para serem aprisionadas ou algemadas num lugar que vão lhe roubar a alma. Amor é liberdade. Posse é gaiola, amor é ninho de onde se pode voar quando se deseja, ou quando se percebe que o ninho parece que está quase virando uma gaiola. Porém, é visível que no mundo temos mais gaiolas que ninhos… Por medo as pessoas muitas vezes preferem as gaiolas da certeza, que a incerteza de encontrar um ninho… Nos acovardamos, escolhemos as gaiolas, nos escondemos nelas. Nos perdemos nas sombras das segurança das gaiolas. Mas, não é possível viver uma vida toda dentro delas, não podemos engaiolar nossas vidas. É preciso ter coragem para viver sem fascismo, este micro-fascismo das relações abusivas e dominadoras. Precisamos nos liberta deste desejo tosco de dominação da vida alheia. Raul Seixas poeticamente escreveu, sentindo o sofrimento e a dor fascista de quem deseja dominar e prender a vida alheia,
“Como podes ficar presa Que nem santa num altar? Quando eu te escolhi Para morar junto de mim Eu quis ser tua alma Ter seu corpo, tudo enfim Mas compreendi Que além de dois existem mais Amor só dura em liberdade O ciúme é só vaidade Sofro, mas eu vou te libertar”
Não é fácil relacionar-se com espíritos livres, com mentes libertárias, porém precisamos antes travar uma forte lutar contra o fascista que habita dentro de nosso universo interior, e isso gera dor e sofrimento; da mesma forma que não é fácil ser um espírito livre, pois a vertigem das alturas no vazio do voo produz medo e insegurança… Mas é preciso coragem para se lançar no vazio onde acontece o voo livre e solitário… Caso contrário, seremos como Serenas e Penélopes submissas dentro de suas gaiolas, morrendo e definhando em suas vidas passivas, reativas e ressentidas, se anulando, e se castrando. A vida do espírito livre é vida de Laos Salomes e Fridas, que querem ninhos para pousar apenas quando desejam, numa vida ativa, proativa e satisfeita, se realizando e sendo feliz. Por isso, não podemos ceder aos macro fascismos estatais, estes colossais fascistas, que nos rodeiam e tentam esmagam até nossos pensamentos; e nem aos micro fascismos domésticos, que querem domesticar a nossas vidas para ficarem limitadas as pastagens permitidas devidamente demarcada, bem estriadas, sem aventura e sem novidade, sem liberdade, estes pequenos fascismos que com chantagens e mesquinharias tiranizam nossas vidas cotidianas… Temos que reconhecer, como nos ensinou Michel Foucault, o inimigo maior da vida é o fascismo, “que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”… Para os fascistas de plantão podemos cantar, como Cazuza, o Blues da Piedade:
“Agora eu vou cantar pros miseráveis Que vagam pelo mundo derrotados Pra essas sementes mal plantadas Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena Remoendo pequenos problemas Querendo sempre aquilo que não têm
[…]
Pra quem não sabe amar Fica esperando Alguém que caiba no seu sonho Como varizes que vão aumentando Como insetos em volta da lâmpada”
Precisamos de coragem para não sermos covardemente arrastados para a vala fácil do fascismo. A vala das intensidades das emoções de todas e quaisquer tipos ou formas que produzem e alimentam os delírios e as alucinações… tipo as intensidade do ciumento em suas emoções delirantes e alucinatórias que povoam os desertos de coisas e seres inimagináveis… Sim, o mundo não parece um moinho do poeta, o mundo é um deserto, um deserto que contraditoriamente está povoado por toda sorte de seres da imaginação delirante. São eles que fazem pó as ilusões de vida feliz. A vida é o que é, nem alegre, nem triste, nem repleta de dor e sofrimento, nem transbordante de felicidade e prazer. Dela teremos um pouco de tudo, num fluir dinâmico, oscilando entre uma coisa e outra, querer parar este fluxo inexorável é cair na vala delirante… Cair no mundo dos fantasmas, do passado apavorante, das lamentações, dos fingimentos, das queixas, das dores… É não viver a vida em sua plenitude. É matar a possibilidade, existem outros mundo possíveis, onde espíritos livres e mentes libertárias não são sufocadas. Mas, enquanto esse mundo possível ainda não existe, o apelo do maio de 1968 continua atual: “Um pouco de possível, senão eu sufoco”, Gilles Deleuze.
Quero agradecer ao meu amigo e colaborador deste blog pela ilustração intitulada: Ninhos e Gaiolas. Nanquim e aquarela s/ papel casca de ovo. 21,0×29,7cm.
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