Ifigênie é originalmente a personagem da tragédia grega escrita pelo dramaturgo Eurípedes. Ela é a filha de Agamenon, o grande líder da coligação grega na Guerra de Troia. Para vencer essa peleja contra os troianos e assim resgatar Helena, sua cunhada, esposa de seu irmão Menelau (o maior dos espartanos, como escreveu o poeta Zé Ramalho), Agamenon buscou ajuda divina e descobriu que para vencer tinha que sacrificar sua filha à deusa Minerva. Exatamente, um sacrifício humano para obter a vitória na guerra. A arte nos fazendo pensar, a relação entre os homens e deus, o preço das guerras, e quais são os sacrifícios legítimos nessa relação servo e senhor. É legitimo sacrificar a própria filha para vencer uma guerra? Aqui entramos na questão do sentido, qual o sentido de tudo isso? Mas o pior é que não podemos dizer que estamos diante apenas do fruto da imaginação de um dramaturgo, pois sabemos que os sacrifícios humanos em rituais religiosos aconteceram historicamente até a pouco tempo, se é que ainda não existam como prática no mundo das sombras. O fato é que na peça teatral de Eurípedes, Agamenon ficou abalado, oscilando entre fazer e vencer a guerra ou não fazer e correr o risco de perder a guerra e assim não salvar a linda Helena. Sua esposa Clitemnestra não aceitou tal absurdo, ela negava todo o sentido do sacrifício de Ifigênia, foi radicalmente contra e tentou persuadir de todas as formas seu marido. Não teve sucesso, pois, do outro lado, o tio de Ifigênia, Menelau fez de tudo para que seu irmão não se deixasse ser persuadido pela esposa. O dramático na trama tecida por Eurípedes é a postura de Ifigênia, ela se resignou. Não se revoltou com a decisão do pai. Aceitou ser levada ao altar do sacrifício para ser imolada como uma ovelha. Ser sacrificada para que os gregos vencessem a guerra contra os troianos. Essa trama da peça teatral grega me surgiu a mente quando estava lendo um livro na Bíblia e me deparei com uma história muito semelhante. Na história bíblica, a menina sacrificada por causa de uma guerra não tem nome, por isso, resolvi chama-la de Ifigênia. A Ifigênia de Jefté. Essa narrativa encontra-se no livro dos Juízes capítulo 11. Jefté, como Agmenon, era um homem valente, líder e forte. Ele foi um importante Juiz, o oitavo juiz do período da organização tribal de Israel. Filho da cidade de Gileade, da Tribo de Gade, um gileadita. Seu pai que também se chamava Gileade, e sua mãe era uma prostituta. O texto bíblico faz questão de destacar isso, temos lá literalmente: “Era, então, Jefté, o gileadita, homem valente, PORÉM filho de uma prostituta”. Isso será um problema para ele logo no início, pois a esposa de seu pai teve filhos e não quis saber de seus filhos crescendo junto com o filho da puta. E claro, como Sara expulsou Ismael, filho de Abraão com sua serva, a esposa de Gileade também exigiu que ele expulsasse Jefté para que ele não se tornasse herdeiro. Assim, Jefté deixa a cidade e a presença de seu pai e seus irmãos e vai habitar na terra de Tobe com homens levianos, nos diz o texto bíblico. Porém, passado algum tempo, os amonitas iniciaram uma guerra contra Israel, e os anciãos de Gileade foram pedir a Jefté para lidera essa guerra. Ele era naturalmente um líder. Aceitou com a seguinte condição voltar por cima, de expulso a chefe. Só iria assumir a liderança se fosse colocado com a cabeça do povo, o chefe de todo o povo. O que foi aceito pelos anciãos. Como um líder sensato, tentou os canais da diplomacia para resolver a situação, mandou mensagens para o rei dos filhos de Amom, que não deu a mínima atenção as explicações de Jefté. Como sabemos, quando o dialogo diplomático não resolve o litígio temo um possível início bélico. A política da boa vizinhança não convenceu os amonitas, assim, quando a negociação política falha, quando ela não consegue estabelecer um acordo racional temos o início da guerra. Desta forma, ao perceber que não tinha outra saída, que se viu obrigado a lutar, a começar uma guerra sangrenta, como Agmenon, Jefté pediu auxílio a Deus. O assustador é que ele de pronto ofereceu em holocausto uma pessoa. Sacrifício humano para vencer a guerra contra os amonitas. Ele disse que quem passasse por primeiro na porta de sua casa para lhe encontrar, quando ele voltasse da guerra vitorioso, seria ofertado em holocausto. E mais assustador ainda é que diz o texto bíblico que “o espírito do SENHOR veio sobre Jefté”. Ele foi para a guerra e venceu. Ao retornar temos o início do seu drama pessoal, quem saiu correndo ao seu encontro foi sua filha única. Segundo o livro de Juízes ele rasgou suas vestes e se prostrou totalmente. A angustia tomou conta dele, lamentou chorosamente ter que sacrificar a própria filha. Não é possível negar a dor deste pai, não podemos simplesmente descrevê-lo como um assassino sanguinário. O que se pode perceber nas entrelinhas desse livro é que o sacrifício humano era coisa legítima, era socialmente aceito, pois não existem vozes contrárias. Ele se manteve rígido, é intransigente, postura comum as pessoas de muita fé, que por ela não faz nenhum tipo de concessão. Não se pode esquecer de Abraão e o sacrifício de seu filho, que não se realizou não porque Abraão retroagiu ou transigiu, a narrativa deixa claro a intervenção divina para não deixá-lo seguir com o ritual. Da mesma forma, Jefté não tem intenção de mudar seu voto, ele resolveu seguir seu propósito. Vai levar até as últimas consequências, não abriu mão de sacrificar sua Ifigênia. Nos diz textualmente “fiz voto ao SENHOR e não tornarei atrás”. Sua filha, como Ifigênia, se resignou. Ela como um cordeiro se entregou para ser imolada. Ela se entregou ao pai totalmente, e diz: “faze, pois, de mim segundo o teu voto”. Não existe na narrativa bíblica detalhes deste drama. Não se tem uma Clitemnestra lutando contra o marido para salvar a vida da filha. Um silêncio assustador, desconcertante e ensurdecedor. Ifigênia de Jefté está só, abandonada a própria sorte. Parece um acontecimento comum. A menina apenas pediu dois meses para chorar sua virgindade com suas companheiras pelos montes. E de forma fria e direta os versículos finais do capítulo onze nos diz: “ao fim dos dois meses tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo o voto por ele proferido”. O sacrifício da Ifigênia de Jefté foi realizado com sucesso. Aqui temos um detalhe interessante nessa comparação entre a peça grega de Eurípedes e o texto Bíblico. Na tragédia grega a Deusa Minerva sequestrou e substituiu Ifigênia por um animal, sem que Agmenon desconfiasse que não estava sacrificando sua filha, mas, no livro dos Juízes, a Ifigênia de Jefté não tem a mesma sorte. Ela foi sacrificada para cumprir o voto de seu pai à Deus.
Agradeço ao meu amigo Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada: Em nome do Pai. Nanquim s/ vegetal. 21×29,5cm.
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